segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sexo com animais: por que fingir que isso não existe?




Quatro em cada dez brasileiros da zona rural já mantiveram relações sexuais com bichos, indica estudo inédito. Como a prática pode provocar câncer de pênis


CRISTIANE SEGATTO

|

|
CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)



O câncer, felizmente, deixou de ser tabu. Raramente ouvimos alguém dizer que tem “aquela doença” ou uma “coisa ruim”. No caso do câncer de pênis, porém, a regra ainda é o silêncio. Quem teve não conta. Quem tem se desespera. Quem procura um posto de saúde raramente recebe orientação adequada.

Apesar de raro (2,9 a 6,8 casos por 100 mil habitantes), ele costuma provocar mutilações terríveis. Quando células cancerosas atingem a virilha e o abdome, a amputação parcial ou total do pênis é quase inevitável.

Até hoje, a principal causa conhecida é a falta de higiene. Desleixo no banho ou a presença de fimose aumentam o risco de câncer. O acúmulo de secreções na glande ou em outras regiões do pênis causa uma inflamação crônica que pode desencadear o tumor.

Se falar sobre a doença pode pegar mal, imagine o que é falar sobre a prática de sexo com animais, um hábito que começa a ser relacionado ao câncer de pênis...Aberração? Mau gosto? Ousadia demais?

Como a ciência é feita de ousadia e a defesa da saúde precisa estar acima de julgamentos morais apressados, esta coluna estará sempre aberta aos assuntos proibidos.

Fazer sexo com animais é uma prática bem conhecida nas áreas rurais do Brasil. É uma questão cultural. O menino faz isso por curiosidade, por brincadeira ou para afirmar sua virilidade diante do grupo. O hábito pode ser passageiro ou durar várias décadas - mesmo depois que o homem já está casado ou não tem dificuldades de encontrar parceiras.

Na maior parte dos casos, porém, a prática fica restrita à juventude. Os homens mais velhos se lembram dela como uma travessura adolescente, uma brincadeira divertida e transgressora como matar passarinho com estilingue. Eles não têm, necessariamente, os distúrbios psiquiátricos conhecidos como zoofilia ou bestialismo.

Em 1979, o então sindicalista Lula mencionou a prática à revista Playboy. Aqui, um trecho:
Playboy - Foi com mulher ou com homem?


Playboy - Com que idade você teve sua primeira experiência sexual?

Lula - Com 16 anos.


Lula (surpreso) - Com mulher, claro! Mas, naquele tempo, a sacanagem era muito maior do que hoje. Um moleque, naquele tempo, com 10, 12 anos, já tinha experiência sexual com animais… A gente fazia muito mais sacanagem do que a molecada faz hoje. O mundo era mais livre…


O sexo com animais é um costume milenar. Condenado pela Bíblia, representado em inúmeras obras de arte e citado pela literatura. Talvez a maioria das pessoas o considere abjeto, mas isso não impede que continue sendo praticado. Mais do que podemos imaginar.

O primeiro estudo completo sobre o assunto, um trabalho inédito no mundo, foi coordenado pelo urologista Stênio de Cássio Zequi, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo.

O artigo científico foi aceito para publicação pelo The Journal of Sexual Medicine, o periódico mais respeitado nessa área. Deve ser divulgado nas próximas semanas.

Aqui você sabe antes.

O estudo reuniu 118 pacientes com câncer de pênis e 374 homens sadios entre 18 e 80 anos. Todos cresceram na zona rural. As entrevistas foram realizadas pessoalmente.

A pesquisa revelou que 31,6% dos homens sadios e 44,9% daqueles com câncer de pênis tiveram uma ou mais relações sexuais com animais a partir da adolescência.

Várias espécies foram citadas: éguas, mulas, vacas, cabras, ovelhas, porcas, cadelas etc. A maior parte (59%) dos homens declarou ter feito sexo com animais por um período de um a cinco anos. A frequência das relações variou:

Uma única vez na vida (14%)
Duas vezes ao mês (17%)
Uma vez por mês (15,2%)
Três vezes por semana (10%)
Duas vezes por semana (9,4%)
Uma vez por semana (10,5%)
Dia sim, dia não (5,3%)
Diariamente (4,1%)
Outras (14,5%)


“As taxas que encontramos nesse estudo são alarmantes, mas verdadeiras”, diz Zequi. “Essa prática ainda é comum nas áreas rurais, mesmo entre a população jovem”.

O trabalho reuniu pesquisadores de 16 centros que tratam câncer em 12 cidades brasileiras (São Paulo, Campinas, Barretos, Itapevi, Carapicuíba, Curitiba, Belo Horizonte, Teresina, São Luís, Natal, João Pessoa, Rio Branco).

“Na nossa amostra, vimos que transar com animais dobra o risco de desenvolver câncer de pênis”, diz Zequi. “Essa é uma novidade mundial, algo que ainda não havia sido demonstrado.”

Os pesquisadores tomaram o cuidado de isolar vários outros fatores que poderiam elevar o risco de câncer (múltiplas parceiras e doenças venéreas, por exemplo) e levá-los a uma conclusão errada.

De que forma as práticas sexuais com animais podem desencadear o câncer de pênis? Uma explicação possível:

A mucosa genital do animal é bastante queratinizada, mais dura que a humana. Pode provocar microtraumas na mucosa do homem e desencadear o câncer. Outra hipótese é a existência de elementos tóxicos na secreção animal ou de microorganismos capazes de infectar o ser humano.

“Por enquanto isso é especulação: o trabalho não nos permite afirmar se há um vírus envolvido nisso, nem se a prática pode causar danos às mulheres com quem esses homens se relacionam”, afirma Zequi.

O câncer de pênis é mais comum e devastador nas regiões mais pobres. O homem passa cinco, seis meses sem diagnóstico. Tem vergonha de falar sobre o assunto. Quando finalmente é examinado por um médico, recebe uma pomada e é mandado de volta para casa.

“Se estamos observando um comportamento cultural que causa danos à saúde das pessoas, as autoridades e os agentes de saúde precisam orientar a população”, diz Zequi. “É preciso dizer a esse público: lave o pênis, não tenha fimose, não transe com animal, use camisinha.”

Transar com animais não é um hábito exclusivo da pobreza. A internet ajudou a disseminar a prática também nos países desenvolvidos. Seja por curiosidade, seja por prazer, seja por doença psiquiátrica. Quebrar o tabu é a melhor forma de reduzir seus danos. Acredito nisso.

(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

Nenhum comentário: